segunda-feira, 9 de julho de 2007




Muro das Lamentações



Nos dias em que os judeus estavam sendo mortos na Palestina, dirigi-me à Grenadierstraβe – não a Jerusalém. Tinha a sensação de que melhor era estar com os destituídos que com os mortos. Fiz à Grenadierstraβe uma visita de condolências. Era um dia quente. Todas as portas estavam abertas, e muitas das janelas. Cheirava a cebola, peixe, gordura e frutas, a crianças de peito, hidromel, roupa por lavar e esgoto. Os judeus ficavam parados ou perambulavam na Grenadierstraβe, com clara preferência para com o meio da rua em relação à calçada, e sobretudo para com a sarjeta. Formavam como que um debrum da calçada. Uma espécie de acessório ao trânsito da Grenadierstraβe, com causa desconhecida e propósito misterioso; como se tivessem sido, por exemplo, incumbidos pela comunidade israelita de demonstrar um ritual específico. Mulheres e crianças amontoavam-se diante das barracas de frutas e verduras. Letras hebraicas em letreiros de lojas, tabuletas de portas e vitrines interrompiam a serena rotundidade do tipo Antiqua europeu com sua seriedade dura, rígida, angulosa, e embora só anunciassem mercadorias, lembravam inscrições funerárias, serviço religioso, rituais, fórmulas de invocação. Foi por meio desses mesmos sinais – com que aqui se apregoam arenques, discos de gramofone e coleção de anedotas judaicas – que Jeová um dia se revelou no monte Sinai. Com a ajuda dessas letras terrivelmente pontiagudas ele deu um dia aos judeus a terrível primeira lei moral européia, para que a divulgassem entre os joviais e inocentes povos do mundo. Só mesmo – pensei – um amor verdadeiramente divino para fazer desse povo um povo escolhido. Havia tantos outros que eram simpáticos, maleáveis e bem-educados: gregos animados, fenícios aventureiros, egípcios dados à arte, assírios de misteriosa fantasia, tribos do norte com sua bela rusticidade loura, sua rusticidade por assim dizer ética, e seu refrescante odor de floresta. Mas nenhum desses! O mais fraco e nem de longe o mais belo dos povos recebeu a mais terrível maldição e mais terrível benção, a lei mais dura e a missão mais difícil: semear amor na Terra e colher ódio.
Não! Se judeus estão sendo massacrados na Palestina, não é preciso ir à Jerusalém e estudar a questão do Mandato Britânico para entender o porquê. Não é só em Jerusalém que há um Muro das Lamentações. A Grenadierstraβe é um Muro das Lamentações após outro. A mão divina que castiga pesa claramente sobre as costas arqueadas do povo. De todos os milhares de caminhos que eles trilharam, nenhum é uma saída, nenhum conduz a um objetivo concerto, terreno. Nenhuma “pátria”, nenhum “lar”, nenhum “refúgio”, nenhuma “liberdade”. Há várias oportunidades de discernir a chamada “vontade da história”. Em nenhum lugar ela se expressa com tamanha clareza como nas muitas Grenadierstraβen em que os judeus mais vagueiam que vivem. (Não é um desassossego patológico-degenerativo, é um desassossego histórico.) Obviamente é a secreta “vontade da história” que esse povo não habite país algum, mas vagueie pelas estradas. E essa vontade assustadora corresponde a assustadora constituição dos judeus. Ao procurar um “lar”, insurgem-se contra si próprios.
Não são uma nação, são uma supranação, talvez o prenúncio de alguma forma futura de nação. Já percorreram há muito as formas toscas de “nacionalidade”: o Estado, guerras, conquistas, derrotas. Converteram infiéis a fogo e espada, e boa parte deles foi convertida a fogo e espada a outros credos religiosos. Já superaram os períodos primitivos de “história nacional” e de “cultura cívica”. Restava-lhes apenas sofrer como estrangeiros entre estrangeiros, porque são “diferentes”. Seus “laços nacionais” já não são de tipo material. Já não há sequer uma absoluta identidade física em comum, nem sequer uma crença religiosa determinada. A religião dos seus pais transformou-se no cotidiano dos netos, tornou-se uma forma de vida, de comer, de dormir e fazer amor, de comerciar, de trabalhar e de estudar. O fato é que as condições do ambiente externo eram mais atraentes e também mais impositivas que as regras que se diluiu a religião. É impossível ater-se a elas quando se quer viver. E, acima de todos os mandamentos da religião judaica, há o mais implacável deles: o mandamento de viver. Cada novo dia exige uma nova concessão. Não é que lhes falte a fé de seus pais – a seus netos é que a fé falta. Ou por outra: ela se sublima nos netos. Determina seus pensamentos, aspirações, condutas. A religiosidade torna-se uma função orgânica do individuo judeu. Um judeu cumpre seus “deveres religiosos” mesmo quando não os cumpre. É religioso simplesmente porque é. Ele é judeu. Qualquer outro é obrigado em certas circunstâncias a afirmar sua “fé” ou sua “nacionalidade”. Só o judeu a afirma automaticamente. Está marcado até a décima geração. Onde quer que um judeu suste o passo, ergue-se um Muro das Lamentações. Onde quer que se estabeleça, ergue-se um pogrom...
Deve-se compreender, enfim, que o sionismo só pode ser um amargo experimento, uma momentânea e talvez necessária degradação do judaísmo ou pelo menos a reversão a uma forma de existência nacional primária, já antiquada. Pode ser que ele tenha suspendido ou embaraçado a “assimilação” de indivíduos ou grupos judeus. Mas em compensação ele busca assimilar todo um povo. Se faz apelo à tradição belicosa dos judeus, é lícito objetar-lhe que a conquista de Canaã não é motivo de orgulho tão grande como a Bíblia, os Salmos e o Cântico dos Cânticos, que o presente dos judeus talvez seja ainda maior que o passado, porque mais trágico...
Talvez fosse até mais “prático”, mais condizente com a Realpolitik, se os jovens judeus que hoje “retornam” à Palestina o fizessem com a consciência de que são menos os descendentes dos macabeus que dos profetas e sacerdotes. No curso de minhas andanças pelo gueto judaico de Berlim, comprei alguns jornais judaicos nacionalistas do Leste Europeu. Suas reportagens sobre as lutas na Palestina não diferiam em nada das reportagens de guerra que líamos em nossos próprios jornais. No mesmo negrito assustador do tipo Borgis, em comparação com o qual sangue humano derramado parece um fluído dos mais inofensivos, esses jornais judaicos nacionalistas relatavam as “vitórias dos judeus sobre os árabes”. E no jargão familiar dos correspondentes de guerra podia-se ler, em aterrador preto no branco, que dessa vez, graças a Deus, não se tratava de pogroms, mas de autênticas “batalhas” Aqui se pode perceber que a idéia de os judeus serem mais inteligentes que as outras pessoas está errada. Não só não são mais inteligentes, como às vezes são mais burros. Não só não estão à frente do seu tempo, como ficam para trás. Imitam a recente bancarrota das ideologias européias. Justo agora dão início aos seus originais banhos ferruginosos judaicos. Que se defendam na Palestina, nada mais natural. É uma vergonha que tenham sido atacados. Mas que seu heroísmo lhes seja confirmado nos jornais – a eles, que durante longos milhares de anos foram heróis totalmente incomuns, sem clichês jornalísticos-, isso comprova definitivamente que de fato não há sete sábios de Sião que governam o destino do povo judaico. Não, há algumas centenas de milhares de idiotas de Sião que não compreendem o destino do seu povo.
Joseph Roth.
Das Tagebuch, 14. September. 1929

2 comentários:

Mirelle disse...

Tradução muito bem feita!!
O texto está fluido, nem dá pra perceber que foi escrito em outra língua, pois não há vocabulário forçado para embelezar o texto.
Parabéns!
Desse jeito você vai longe!

Unknown disse...

Muito texto, rapaz.
Não estou capaz de ler tudo por falta de tempo...

Desejo-lhe tudo de bom e fique com Deus.

As duas figuras na começa são necessários? Elas são tão feio!!