terça-feira, 31 de julho de 2007

Franz Kafka e as
colunas da imanência

Fernando Costa


Ao olhar para os volumes de Franz Kafka enfileirados na prateleira percebo que, diferentemente dos outros livros, os mesmos suportam algum peso sobre osseus dorsos. Imediatamente lembro-me do irmão de Prometeu, Atlas, e seu castigo eterno, condenado a sustentar sobre os ombros em forma de colunas, aquilo que outrora lhe pertencia: o céu. Semelhantemente, o peso da existênciasempre terá uma conotação trágica em Kafka, assim como o mito titânico, levando-se em conta que o que suportaremos agora não é mais celeste, mas sim de aspecto plúmbeo.

Ouso afirmar que tal composição trágica não seria possível perceber se não levássemos em conta um elemento comum em todas as suas obras: o tema concernente à “liberdade”. É claro que existem outros temas, como a punição, o poder e a culpa, todos de forte inspiração em Kierkegaard[1], mas a busca constante de “liberdade” revela também, como diria Backes (2007, pg.26) “o desespero do homem moderno em relação à existência, a eterna busca de algo que não está mais à disposição, a pergunta por aquilo que não tem resposta são as características mais marcantes de O Processo e de toda a obra de Kafka[2]”. Na verdade, em Kafka, toda e qualquer requisição por liberdade trata-se de uma ironia que esconde o anseio de seu “outro”: a busca por “saídas”. Ironicamente, estas “saídas” não estão à disposição de percepções menos acuradas, ou seja, como diria o macaco em seu “Um relatório para a Academia”: “Tenho medo de que não compreendam direito o que entendo por saída. Emprego a palavra no seu sentido mais comum e pleno. É intencionalmente que não digo liberdade. Não me refiro a esse grande sentimento de liberdade por todos os lados” (Kafka, 2003, pp.64). Apenas uma saída, era o que o macaco desejava, para direita ou esquerda, para onde quer
que fosse, não importava. Por outro lado, esta busca, não obstante, trata-se de
um ponto de fuga que é esmagado pelas possibilidades, pois Kafka ao descobrir
a perspectiva aberta das palavras no mundo da literatura fantástica, entra em
conflito com outro “ponto de fuga” disponível: o cabalístico. Sobre este, Kafka
nos diz que “aquilo que não está mais à disposição” foi esquecido para sempre:
“(...) as palavras são maus alpinistas e maus mineiros. Elas não resgatam os
tesouros do cume das montanhas nem os de suas profundezas” (Kafka apud
Merçon, 2007, pg. 33). Daí o seu ponto de fuga estilístico: o recurso alegórico
do mito, pois “...Sólo en la creación artística, en la construcción de mito, Kafka
intenta liberarse de las ambigüedades de este mundo. Su técnica: el arte, la
creación, de hecho un desafío a la muerte. Todo artista es, a su manera, un
deicida” (Laurent, 1983, pg. 07)
Dessa forma, Kafka em seu século, ao recorrer a esse método possibilitou nos apresentar a realidade em forma de labirinto, percebendo que não haveria mais qualquer possibilidade de saídas pelas vias da “normalidade” (moral) ou transcendência, já que, com o “silêncio de Deus[3]” e a fragmentação do sujeito, a percepção da realidade se deslocara agora para o âmbito do absurdo.
Entenda-se o “absurdo” em seu sentido positivo, já que tal ausência permitirá a Kafka desdobrar-se sobre os elementos da literatura fantástica. De outra forma, não seria possível seus personagens refugiarem-se em animais, último âmbito
possível de percepção crítica da realidade.

Por sua vez, no “âmbito humano”, é comum em suas obras a realidade apresentar-se como algo inacabado, cuja ausência de totalidade, é completada por uma penumbra misteriosa, onde “o desejo de morte é um dos primeiros indícios que começamos a discernir. Esta vida nos parece intolerável, a outra inacessível. Já não se sente vergonha de querer morrer; implora-se desde a
velha cela que odiava, para ser transferido a uma outra nova, tendemos todavia
que a aprender a odiar” (Kafka, 1983). Tal incompletude nos proporciona a ênfase em personagens isentos de memória biográfica e a imprecisão temporal
dos contos auxiliando o desenvolvimento narrativo da trama em lugares
sombrios ou esquecidos. Como diria Benjamin (1994), o mundo subterrâneo,
dos arquivos, salas mofadas, escuras e de ar rarefeito, é o universo, por excelência, de Kafka. É nesse ambiente onde se verifica que o esquecimento
biográfico de seus personagens estão cobertos pelo manto empoeirado de um
tempo sombrio e sempre idêntico a si mesmo. Portanto, recorrer à memória,
pelo menos em Kafka, é sem sentido. Sobre isso Gagnebin nos resume:

“Se Proust personifica a força salvadora da memória, Kafka faz-nos entrar no domínio do esquecimento, tema chave da leitura kafkiana. Poderíamos dizer, também, que se Proust representa a tentativa – árdua – de uma rememoração integral, Kafka instalou-se sem tropeços e sem lágrimas na ausência de memória e na deficiência do sentido” (1994, pp.16).

Vale lembrar que o “domínio do esquecimento” nos remete à atemporalidade
dos seus escritos, fato este tão bem salientado por Borges[4]:

" A leitura de outros escritores nos leva a pensar na época em que escreveram. Se tomamos o caso de Shakespeare, temos que pensar continuamente que escreveu para o palco e não para a leitura; temos que pensar na política, na decadência da Espanha, da Armada Invencível. Se tomamos o caso de Dante, não podemos esquecer sua teologia nem seu amor por Virgílio. Se tomamos o caso de Walt Whitman, não podemos prescindir do sonho da democracia que professava. Tampouco podemos ler Hugo sem nos afastarmos da história da França. Kafka é uma exceção a essa regra tão comum na história da literatura. É um escritor a quem podemos ler atemporalmente".

Isso, claro, interfere na forma como alguns de seus personagens percebem a
realidade. Semelhantes a colunas, o peso debruça-se sobre os seus corpos em
forma de pesadelos, como nos mostra o seu conto “Um sonho”, uma mistura de
sonho e realidade, onde Josef K sonha com um belo dia, mas que, “mal tinha
dado dois passos, porém, já estava no cemitério” (Kafka, 2003, pp. 96). Em
outros termos, embora a âncora da existência se dê através da imanência, ela
sempre será parafraseada pelo sonho, ou melhor, por uma “sobre-realidade”
angustiante: “esse ser que aspira até o último alento, até a asfixia[5]” (Laurent,
1983; pg. 07).

Um outro fato a ser destacado são as interpretações por vielas transcendentais, fato este que sempre desembocará nas seguintes questões comuns: Por que a nossa própria existência não nos basta? Por que da penumbra do canto do portão, fixamos o nosso olhar espantado em um cenário iluminado que absorve toda a nossa atenção? Por que tememos o porteiro que está diante da Lei? Percebemos que em Kafka, a busca por um mundo que tenha significações e o anseio, mesmo que por sugestões (como é o caso do conto “Diante da Lei”.), de uma plenitude existencial é fraudada pelas limitações de um mundo desprovido de “resíduos mágicos”. Sobre tal desencantamento, Kafka afirma: “As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as possibilidades de saída são tão numerosas quanto as portas. Há um propósito e nenhum caminho: o que denominamos caminho não passa de vacilação”.

Em suma, Kafka compreende que não existem caminhos, mas sim labirintos. Embora o labirinto seja uma obsessão pelo finito, uma “perversão da realidade” (ambientes cotidianos, medíocres, burocráticos), trata-se, com exceção da morte, a única coisa que nos resta, enquanto a busca por saídas se
revelará como o seu reverso: uma obsessão pela postergação infinita (Borges,
pg.08 1977).


Referências:

BACKES, Marcelo. O escritor à sombra. Revista Entre Livros. SP: Ediouro, 2007.

HELLER, Erich. Kafka. Tradução de James Amado, São Paulo: Cultrix & Editora da USP, 1976.

KAFKA, Franz. Um médico rural. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2003

LAURENT, A. (Org.) Franz Kafka - Obras Completas. Trad. Joan Bosch; Espanha: Estrada Editorial Teorema-Visión Libros, 1983




[1] Sobre isso Francisco Merçon (2007, pg.34-35) afirma que Kierkegaard ressoa no pensamento de Kafka, especificamente no que tange à “angústia” e à “resignação”, sendo estes agora, os verdadeiros estados da alma do homem moderno em conflito com a moral. Tal conflito adviria do abandono de Deus e da nossa profunda solidão.
[2] Lembre-se que a “culpa” (O Processo) e o “inacessível” (O Castelo) em Kafka sempre será um Urphänomen, ou seja, um fenômeno irredutível. Assim, enquanto a primeira não possui conteúdo legal nem causas psicológicas suficientes, a segunda revela a busca impossível da mente irrequieta e errante. Ver: HELLER, Erich. Kafka. Tradução de James Amado, São Paulo: Cultrix & Editora da USP, 1976

[3] Kafka também foi influenciado por Nietzsche, principalmente a sobre a morte de Deus anunciada por este filósofo. Ver artigo: Backes, Marcelo. A teia kafkiana. (2007, pg. 37).
[4] Jornal Folha de São Paulo, entrevista em 10.12.83.
[5] Obras Completas – Franz Kafka.. Org.: A. Laurent, Roberto R. Mahler, José Martín González y Jordi Rottner Trad. Joan Bosch; Espanha: Estrada Editorial Teorema-Visión Libros, 1983

3 comentários:

Mirelle disse...

Ótimas comparações, belíssimas, senão poéticas! Podemos sentir realmente em Kafka todo esse peso que a existência carrega consigo e que, consequentemente, nós temos que agüentar pelo resto de nossas vidas.

Mirelle disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mirelle disse...

Cadê as atualizações, tô esperando pra fazer mais comentários, ok?

bjossss